Não é incomum se encontrar em convenções de condomínios mais antigos previsão sobre moléstias contagiosas. Desde que existe compartilhamento de posse/propriedade, sempre houve o receio com doenças que poderiam ser facilmente disseminadas em ambiente coletivo. O avanço das ciências biomédicas, entretanto, gerou uma relativa segurança da sociedade contemporânea, tanto que não se vê mais com tanta frequência previsão sobre doenças em convenções. Por outro lado, essa sensação de segurança vez ou outra é desafiada, como agora, pela vinda do novo Coronavírus (COVID-19).
Seguindo a essência do Direito de Vizinhança, o artigo 1.336, IV, do Código Civil brasileiro determina que é dever do condômino não prejudicar a saúde dos demais. Fazendo uma leitura conjunta com as atribuições do síndico previstas no artigo 1.348, também do Código Civil, chega-se à conclusão de que lhe cabe contribuir e fiscalizar tal dever, especialmente no que toca ao uso das partes comuns e à exposição a risco dos demais condôminos e ocupantes transitórios (prestadores de serviços e visitantes), muito embora caiba a cada morador tomar suas medidas individuais com base no artigo 1.277 do Código Civil.
Existe respaldo, portanto, administrativo e jurídico, para as medidas que um condomínio venha a adotar para combater doenças infectocontagiosas.
O jurídico é o declinado acima. O administrativo é a existência de fundamento biomédico para se promover determinadas restrições: ato público ou parecer de profissional ou entidade especializada em doenças infectocontagiosas, e já o temos: o pronunciamento do Governador do Estado de São Paulo determinando “quarentena absoluta” até dia 07 de abril, cuja portaria será publicada na segunda-feira, 23 de março. Além disso já há orientações a respeito pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e na segunda-feira próxima também será editada portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Levando-se em conta que este estado de coisas restringe o direito de ir e vir de todos os cidadãos bem como o de funcionamento de todos os locais de acesso público ou privado - estes que por suas características recebem grande volume de pessoas (caso dos condomínios) -, fica permitido ao síndico (que “deve”, e não “pode”) adotar medidas tendentes a restringir direitos dos condôminos/moradores em suas propriedades/posses, tais como interditar as áreas comuns, proibir continuidade de obras e entrada de visitantes, paralisar parcialmente serviços de rotina internos e contrair despesas excepcionais sem prévia aprovação da assembleia, podendo punir com multa quem desrespeitar as regras excepcionais.
1. Das Restrições de acesso à edificação – serviço essencial: Dependendo de como é o acesso ao condomínio, a porta de entrada pode ser um foco de contágio, uma vez que pode ser tocada por um número muito grande de pessoas. Nesse caso, o ideal é viabilizar a abertura remota da porta. Se existe um porteiro com esse acionamento remoto, é o que deve ser priorizado, bem como qualquer outra forma disponível. A utilização do sistema de entrada e saída através de identificação biométrica deve ser evitada também e pelos mesmos motivos. Não se deve permitir também atividades de hospedagem, como as negociadas via ‘AirbNb’ ou ‘Booking’, pois têm natureza não residencial e expõe a coletividade à grande rotatividade e, consequentemente, risco de contágio, muito embora, dadas as circunstâncias, seria de grande ousadia alguém se arriscar a oferecer hospedagem ou se hospedar nesse momento.
Considerando-se o estágio atual em que nos encontramos de contágio coletivo (aquele em que já não se depende de contato com quem efetivamente esteve em áreas de risco), para o qual nos é orientado/imposto ‘distanciamento/isolamento social’ para se evitar a disseminação em massa, o síndico pode proibir a continuidade das obras em andamento e que novas se iniciem, bem como a entrada de visitantes, sejam ou não familiares dos moradores, pois não se pode prever de onde poderá vir o contágio.
2. Das Restrições de uso do elevador, escadas e demais dependências de acesso - serviço essencial: A preocupação com o elevador se funda no espaço curto entre os usuários dentro do aparelho de transporte em ambiente fechado e ventilação limitada ou inexistente. Sem eliminar o uso do elevador, é possível reduzir o limite de pessoas que podem utilizar o elevador ao mesmo tempo, deixando esse limite facultativo para os ocupantes da mesma unidade imobiliária ou quem mais desejar. Cautela extra se impõe com os botões do elevador (internos e externos) que se tornam também focos de contágio.
Também é possível implementar restrições semelhantes para o uso das escadas e outras dependências de acesso (como a portaria e corredores), mas com avaliação proporcional do tamanho do ambiente e, especialmente, sem prevalecer em caso de escape – situação em que naturalmente se terá maior quantidade de pessoas utilizando a parte comum como fuga.
3. Da Interdição parcial ou total de áreas comuns não essenciais: Piscina, academia, salão de festas, sauna, quadra poliesportiva e outros espaços semelhantes podem ser fechados ou impostas regras que reduzam seu funcionamento (redução de horários ou de pessoas utilizando simultaneamente). Muito embora tal determinação afete de forma direta a propriedade dos condôminos, ainda maior é o prejuízo em potencial à saúde coletiva.
4. Da Formalidade para a adoção das medidas mencionadas: Em se tratando de uso de áreas comuns, a competência para se criar regras seria da assembleia, no entanto, diante da emergencialidade, o síndico pode tomar as decisões que entender mais adequadas para resguardar a saúde dos ocupantes da edificação e posteriormente, mas oportunamente, deve convocar assembleia para prestar contas de seus atos e ratificar suas decisões. Porém, como a própria realização de assembleia pode ser um fato nocivo à saúde dos condôminos, também há ressalvas neste aspecto.
5. Das Assembleias - reunião virtual - voto à distância - voto por escrito - assembleia permanente: Mais preparados são os condomínios que já fazem uso de tecnologia para viabilizar a participação de condôminos à distância – o que pode ser facilmente implementado com avaliação de seu jurídico. Participação e voto viabilizado por, por exemplo, WhatsApp, Skype, Zoom, etc. Com a adequada preparação jurídica, a parte presencial da assembleia pode ser substituída por uma conferência ‘on line’ em tempo real e coleta individualizada de voto, também à distância. Sob outro aspecto, embora não tão eficiente, também os condomínios que já regulamentaram internamente forma de se realizar assembleias permanentes, também podem minimizar o contato coletivo, estabelecendo sessões de deliberação com um pequeno número de pessoas. O uso dessa via também deve ser bem trabalhado pelo jurídico do condomínio, para evitar fraudes ou invalidação judicial. Se nenhuma das hipóteses acima puderem ser utilizadas, somente as assembleias imprescindíveis devem ser realizadas. Para tanto, deve-se ter em mente o seguinte:
- realizá-las em ambiente aberto, mesmo que não seja o costume;
- permitir em caráter excepcional, envio de votos por escrito (que, na prática, não é diferente de uma procuração), preferencialmente, digitalizados;
- substituir a lista de presença por gravação e/ou registro da presença pela presidência da assembleia;
- declarar como prejudicados itens que possam ser adiados, encurtando o tempo da assembleia presencial;
- reduzir o tempo de duração da reunião com uma condução mais célere pelo presidente, discutindo apenas itens essenciais que não demandem quórum qualificado e fechando a ata nos dias seguintes;
- deixar espaço físico obrigatório entre os participantes e exigir o uso de máscaras;
- barrar a participação de pessoas que aparentem ter problemas de saúde, explicando na convocação que longe de ser discriminação trata-se de filtro que reduz os riscos e que a pessoa pode enviar procurador para representá-la.
Um aparte: Se a próxima assembleia teria como pauta a eleição de síndico, surge a dúvida de que, se não eleito, a representação do condomínio poderia restar prejudicada perante bancos e a Receita Federal. Apesar de ser uma preocupação válida, entende-se que, sob o risco de contágio, há fundamentação jurídica suficiente para se obter autorização ou convalidação judiciais (antecedentemente ou posteriormente) para validar tal representação perante terceiros, até que a situação se normalize e nova eleição possa ser convocada.
DEVE-SE TER EM MENTE QUE NESTE CENÁRIO DIFICILMENTE O PODER JUDICIÁRIO IRÁ CONTRA MEDIDAS DE CAUTELAS ADOTADAS PELO SÍNDICO QUE EVENTUALMENTE TENHAM SUPRIMIDO CERTAS FORMALIDADES OU DIREITOS, ESPECIALMENTE CONSIDERANDO O RISCO DE CONTÁGIO EM DIMENSÕES INCALCULÁVEIS.
Se dará mais atenção ao conteúdo do que a forma; à intenção do que os métodos. Por essa razão é importante que cada passo tenha embasamento de fato e de direito.
6. Das obrigações de proteção e dever de informação de quem está doente ou com suspeita: Todo condômino tem o dever legal e moral de não prejudicar a segurança, saúde, sossego dos demais e respeitar os bons costumes (artigo 1.336, IV, do Código Civil). Por essa razão, dependendo do risco, pode-se exigir que:
- se utilizem de máscaras e de luvas descartáveis enquanto estiverem em qualquer parte comum, especialmente em áreas confinadas, como o elevador;
- que comuniquem ao síndico suspeita ou confirmação de existência de doença infectocontagiosa que possa afetar os demais, devendo o síndico guardar sigilo sobre sua identidade.
7. Da possibilidade de contrair despesas excepcionais sem prévia aprovação da assembleia: Mesmo sem autorização da assembleia, o síndico pode comandar gastos relacionados a equipamentos de proteção individual (EPI) para seus funcionários, como máscaras, luvas, álcool em gel ou líquido ‘70%’ para uso pessoal e limpeza de superfícies, e às áreas comuns, como instalação de dispensers com álcool em gel, pois tais medidas tem o intuito de diminuir a disseminação do vírus nas áreas comuns.
Vale lembrar que o SUS desenvolveu um aplicativo com o objetivo de conscientizar a população sobre o COVID-19 e, para isso, o aplicativo conta com diversas funcionalidades, realizando uma triagem virtual indicando se é necessário ou não a ida ao hospital em caso de suspeita e infecção do Coronavírus. Essa informação precisa ser disseminada entre os ocupantes, funcionários e prestadores de serviço do condomínio.
8. Da possibilidade de punição a quem desrespeitar estas regras mesmo sem previsão delas em convenção, regimento ou atas de assembleias: Diante da evidente intenção de proteção do interesse coletivo e público sobre o particular bem como do fato de que são crimes contra a saúde pública propagar doenças (artigo 267 do Código Penal) e descumprir determinações do Poder Público para evitar propagação de doenças contagiosas (artigo 268 do Código Penal), é lícito ao síndico punir com multa o condômino/morador que descumpra as regras que visam proteger a saúde do coletivo.
9. Do afastamento de funcionários orgânicos em situação de risco aumentado e dos ordinários: A respeito dos funcionários orgânicos, maiores de 60 (sessenta) anos, hipertensos, diabéticos e imunodeprimidos de qualquer idade são os mais vulneráveis, devendo o síndico afastá-los de suas atividades para protegê-los do contágio até que o retorno seja permitido pelas autoridades competentes.
Em relação a funcionários orgânicos fora dos grupos de risco pode haver flexibilização do horário de trabalho, por exemplo, passando de diário para dias alternados, com redução do salário proporcional em até 50% (cinquenta por cento), com a garantia de remuneração mínima de 1 (um) salário mínimo e a irredutibilidade do salário/hora. Já há notícias de que o Governo Federal vai publicar em breve uma medida provisória flexibilizando horários de trabalho e remuneração.
O que temos hoje são medidas trabalhistas temporárias publicadas pelo Ministério do Trabalho na quarta-feira, 18 de março, denominadas de orientações/recomendações. Durante o estado de emergência trabalhador e empregador vão poder celebrar acordos individuais com preponderância à lei, respeitados os limites previstos na Constituição Federal. Férias, férias proporcionais, férias coletivas e banco de horas podem ser antecipados com notificação prévia do trabalhador com 48 horas, sem a necessidade de notificar os sindicatos e o Ministério da Economia.
Embora saibamos que Orientações/Recomendações, ainda que de órgãos públicos, não têm força de lei, não segui-las significa assunção de risco, e o condomínio/síndico pode ser responsabilizado por omissão, civil, criminal e administrativamente.
A situação é grave e exige o engajamento de cada um, de todos nós. Não é só questão de saúde, mas de cidadania e de humanidade.
Comments